quarta-feira, junho 17, 2015

A Intrusa


Nos idos de agosto de 1979, dois senhores argentinos caminhavam pela Avenida Rio Branco, no centro do Rio. A animada charla portenha foi interrompida, súbito, por um deles – de nome Astor: “Tive uma ideia para o tema do filme. Onde existe um piano por aqui?” O outro, chamado Carlos, não hesitou e caminharam juntos até o auditório da Funarte. Astor Piazzolla então sentou-se ao piano e compôs a música-tema de “A Intrusa”, filme dirigido pelo outro argentino, Carlos Hugo Christensen.

A algumas quadras, martelos batiam em uma construção qualquer, como gritos metálicos, porque o centro do Rio ferve, e fervia ainda mais naquele agosto, cinco meses após a inauguração do metrô. Operários trajando camisetas do América F. C. mal sabiam que, na velha Rua da Imprensa, 16, o gigantesco sonho se urdia: em pleno Edifício Gustavo Capanema, de pilotis macios, contrapostos ao neoclássico (e vizinho) Ministério da Fazenda, onde Christensen rodara parte de “Viagem aos Seios de Duília” (1964). 

Em 1979, Christensen já se acostumara a esses doces carioquismos. Usava todos para palitar os alvos dentes. Sabia, por exemplo, do moleque do amendoim (vide “Crônica da Cidade Amada”, 1965), dos bondes (o sightseeing da Guanabara, já em “Él Angel Desnudo”, 1946), da Bossa Nova (documentário homônimo, 1964). Também sabia dos “Anjos e Demônios” (1970), dos michês, da “Morte Transparente” (1978), da rebarba trágica que empestearia os 1970. 

Enquanto Leninha se entregava ao bandido 1001 (no clássico “Terror e Êxtase”, 1978, de José Carlos Oliveira, dirigido por Antonio Calmon), Christensen procurou uma outra guinada literária. Ao invés de prosseguir no policial brasileiro, tentado em “A Morte Transparente”, adaptou “A Intrusa”, primeiro conto do livro “O Informe de Brodie” (1970), de Jorge Luís Borges. E parece belo que tenha fechado a década voltando à mãe argentina, à ideia dos pampas, mas fincando os pés em Uruguaiana – fronteira com o Brasil, sede da trama. 

Para deixar tudo ainda mais complexo, um singelo detalhe. Christensen afirmou, em entrevista ao Globo (16/02/79), ter certo desconforto ao ler em espanhol. Daí reler Cortázar, Sábato e Borges nas traduções brasileiras. Heresia das heresias, transgressão das transgressões: negar o idioma natal. Carlos Hugo sempre foi extremamente hábil em não fazer e não dizer o óbvio. 

Por isto mesmo, “A Intrusa” é uma coautoria. Muito mais do que adaptação pura e simples. Leiam o conto (curtíssimo), vejam o filme. Esta é a origem, bastante provável, do circuito de simpatia-antipatia que Jorge Luís Borges vivenciou. Em 1981, se disse comovido pelo longa-metragem, segundo a revista argentina Gente, e celebrou-o em um primeiro momento. Quando o filme estreou em Buenos Aires, julho de 1984, Borges concedeu entrevista dizendo não tê-lo aprovado, em virtude da óbvia homossexualidade. Ressaltou que a escolha dos irmãos como protagonistas havia sido proposital, para que a conotação nunca existisse.

Depois de longas como o de Bernardo Bertolucci – “Estratégia da Aranha”, realizado a partir do conto “O Tema do Traidor e do Herói” –, Borges sentia-se melindrado por todo o processo. Já recusara propostas para “A Intrusa” e chegou a imaginar Santana do Livramento no roteiro. Fôra lá que escutou o boato inspirador da história e haveria de ser lá o registro das imagens: acreditava que ainda se conservariam as idiossincrasias gaúchas na região. Praticamente cego, não pôde assistir ao filme. Sopraram-lhe ao ouvido. Satisfeito ou chocado, era cinéfilo, e conhecia de décadas o componente homossexual na obra de Christensen. A princípio, não poderia queixar-se.

“A Intrusa” de Carlos Hugo traz Cristiano Nilsen (José de Abreu) e Eduardo Nilsen (Arlindo Barreto), repetindo o conto. Traz esses dois homens que continuam a ser irmãos: Cristiano coloca Juliana (Maria Zilda) dentro de casa. Eduardo olha tudo com a força bruta de um Nilsen mais novo. Juntos, continuam a amaldiçoar a existência de Juliana, a mulher intrusa. Mas, acima de tudo, agora os dois rapazes se procuram, se precisam, e, nesse tabu, se exilam. Reformulou-se a estrutura narrativa. Aumentou-se o gozo e a perversidade.

Entre dezembro de 78 e março de 79, a equipe rumou para Uruguaiana. Contavam com Maria Zilda, sobrinha do então Ministro do Exército, Fernando Belfort Bethlem. Entre os contratempos, prisão por porte de maconha – entocada por parte da entourage. No meio do nada, do silêncio, das dimensões imensas e vazias, surge o casebre demoníaco de Cristiano e Eduardo. 1897 na tela, sem eucaliptos, sem ovelhas brancas, sem a civilidade frágil de 1979, o que exigiu um apuro delicadíssimo de cenografia. 

O vento minuano foi criado por hélices de avião. O rancho, que é o epicentro do caos, baseou-se em desenhos antigos e, para tanto, desmontou-se um curral de mais de 150 anos, migrando a pedraria. Fornos, galpões, poços, trajes, lutas, rinhas de galo, a honradez dos compromissos, o estoicismo. Esse requinte christensiano de reconstrução – que se vê no baile bonaerense de “Safo, Historia de Una Pasión” (1943) ou na Londres vitoriana de “La Dama de La Muerte” (1946) – repete-se aqui. Desta vez com o adendo dos diálogos de Orígenes Lessa (parceiro eterno) e de Ubirajara Raffo Constant (folclorista), que auxiliaram na criação de uma novilíngua. 

Arrebatou prêmios no Festival de Gramado, onde, à boca pequena, críticos idiotas acusavam a obra de “pornogauchada”. Contrariando os colegas, Ely Azeredo afirmou algo brilhante: “Somos mais que afro-lusos-tupis. Somos hispanico-italianos, temos até costelas japonesas e alguns músculos gaúchos-argentinos”.

Vou mais longe. Christensen parece querer se comunicar muito mais com uma universalidade, do que propriamente com o recorte temático que pesquisou ferozmente. Subvertendo Borges, desejou prestar uma homenagem ao amigo. O episódio da primeira luta, entre Eduardo Nielsen e Daniel Iberra, aliás, fora relatado a Christensen pelo próprio Borges. As lutas, segundo Christensen, serviram para pôr em destaque a paixão de Borges pelas armas e pela descrição de coragem. Borges dizia que “Se há algo de que um homem jamais se arrepende, é de sua coragem”. Desmentindo a lenda, percebam que Christensen ouviu o escritor nos mínimos detalhes. Só que ouvir não significou abandonar suas próprias obsessões, sua autêntica vontade de criar. Muito embora estoicos, os Nilsen também são ladrões de cavalos – fenômeno típico da fronteira, no século XIX.

Vejam, ainda, o momento sublime em que o diretor interdita a própria figura de Deus. Juliana somente fala aos 57 minutos de metragem. Ingênua, diz que um crucifixo caiu do céu. Bem depois, calada no escuro breu, apenas reagindo aos comandos dos irmãos, ela consegue ter uma iniciativa própria. Deita-se, a camisola contrita, as mãos indo buscar o crucifixo ao lado da cama. Beija a cruz, temente a Ele, imaginando um refúgio e, quem sabe, a redenção. Mas redenção não existe. O seu Deus não existe. Deus, naquela estância, naquele tempo, era a vontade doentia de Cristiano e Eduardo. 

Bom lembrar que não conseguimos simpatizar com a monstruosidade dos irmãos. Consegue-se o pior: adentrar na maldade, entendendo-a como algo quase místico, a exemplo dos delírios de “Enigma para Demônios” (1974) – embora, neste, não se atinja o mesmo grau de brutalidade sofisticada. Correndo por fora, a iconoclastia de “A Intrusa” esconde elementos bíblicos, como nos versículos que descem feito luva na vastidão épica das cenas. “A angústia me oprime por ti; ó meu irmão Jônatas! Tu eras toda minha delícia; teu amor era para mim mais precioso que o amor das mulheres” (2 Reis, I, 26). Quem buscar a citação, entrará no jogo de gato e rato, pois o versículo não existe no Livro II de Reis. Busquem o Livro II de Samuel, um dos reis proféticos. O diretor-coautor-roteirista induz o espectador – essa alma crédula – a um caminho espiritual que, no fim, é de tragédias imensas, a exemplo do Velho Testamento, mas sem a benção do Pai. 

“A Intrusa”, bólido christensiano, estreou no Rio em junho de 1980. Teria estreado logo na Argentina, mas o impávido diretor recusou-se a fazer cortes e a Censura acabou proibindo-o, adiando a exibição para 1984. Eis o homem de espinha ereta, aristocrático quando necessário, sujo quando devido. Construiu feitiços no tempo, do tipo que deságuam em matéria fílmica, para o total, completo e delicioso mal-estar na sala escura.


PS – Quem quiser ler mais sobre a obra de Christensen, vai aqui o link do catálogo da Mostra Carlos Hugo Christensen – organizada pela Heco Produções – em que escrevi um dos ensaios introdutórios, ao lado do pesquisador argentino Mario Gallina. Além destes, outros textos de Carlos Primati, Gabriel Carneiro, Marcelo Miranda e depoimentos de Afranio Vital, Martin Maisonave e Roberto Farias. 

5 comentários:

Ademar Amancio disse...

Sempre quis ver esse filme,vou procurar vê-lo.

Andrea Ormond disse...

Veja sim, Ademar. Um clássico poderoso.

Ricardo Montero disse...

Não conheço o filme, e o conto acabei de lê-lo. Borges era mesmo fantástico: que história densa, em tão poucas linhas! Imagino o filme, deve ser ótimo também.

Sergio Marcio disse...

Muito bom! Eu lembro que este foi o segundo filme que eu vi na minha vida, ainda pré-adolescente (tirando os filmes dos Trapalhões, claro). Lembro que gostei, mas vou "revisitá-lo" agora. Além disso, lendo o post fiquei com vontade de conhecer o restante da filmografia do Christensen. Farei isso o antes possível!

Andrea Ormond disse...

Ricardo e Sergio, tem muita coisa do Christensen no Youtube! É só apreciar.