domingo, setembro 15, 2013

As Aventuras de um Paraíba


No livro de ouro do anedotário carioca, alguns verbetes são fundamentais. Desde Villegaignon (o amigo de infância de Araribóia), temos um carrossel de mitos e a delicada genealogia. Percebam a beleza da coisa: o pivete, o camelô, os apontadores de bicho, as madames, os professores da Puc, os incompreendidos e eles, os eternos, os “paraíbas” [sic].

Designar um imigrante nordestino como “paraíba” é ato de imperial non chalance. Mussum dizia-o com frescor nos dentes. Equivale ao “dragão chinês”, à “filhinha de papai”, ao “velho do frescobol”, à “mulata boazuda”. Evidente que até mesmo o deboche pode se degenerar e transformar-se na tosquice de alguns: o xingamento, propriamente dito. O que fazer? Imbecilidades existem.

“As Aventuras de Um Paraíba” (1982) homenageia o que há de melhor (e utópico) no cabra clássico e urbano. E isto muito embora o filme seja encabeçado por um “filhinho de papai”, o galã Caíque Ferreira, que saiu do augusto Posto 9 e coloca a saint-tropez desbotada da Mesbla, rebolando qual vedete, na terra prometida.

De certa forma, há em “As Aventuras de Um Paraíba” um prolongamento da Zona Sul do Rio, já vista nos filmes de Antonio Calmon – “Nos Embalos de Ipanema” (1978), “Gente Fina é Outra Coisa” (1977). Especialmente nos “Embalos”, temos a subversão da homossexualidade, que choca tanta gente quanto as bandejas de pó em “Rio Babilônia” (1982). Zé (Caíque Ferreira) aprende a ganhar dinheiro com o próprio corpo. Dorme com bacana, dorme com coroa, se vira. E a cidade ferve, armaria.

Marco Atlberg dirigiu e Calmon andou nos créditos das “Aventuras”. Em entrevista a este blog, Calmon afirma que o espírito do filme sempre esteve, porém, com José Gonçalves do Nascimento, o verdadeiro roteirista. Mesma produtora (LC Barreto) e mesmo estilo jovial também poderiam aproximar “Aventuras” de “Menino do Rio”, o blockbuster de Antonio Calmon. As coincidências morrem por aí. “As Aventuras de um Paraíba” dedica-se a construir um Zé alegórico.

O rapaz chega na Rodoviária Novo Rio (outro verbete importante) e é recebido pelo irmão preto: Zé Preto (Paulão) e Zé Branco são o que há de comum nas famílias interioranas. O Preto agregado, o Branco que o considera do mesmo sangue e vice-versa. No minuto seguinte, as catracas e os vagões dos trens levam os dois ao Grande Rio. A um bairro ou a um município anônimo, vizinho, que serve de dormitório.

No vai-e-vem entre o barraco sujo e as praias de Copacabana, Zé Branco vira falso paralítico, vendedor na areia, michê, transa de fotógrafa prafrentex (Débora, Tamara Taxman). Samba com o furor de quem vai ao Maracanã na celestial Era Zico. Canta no programa do Chacrinha, repetindo o sucesso de Jackson do Pandeiro: “Vige como tem Z/ Zé de baixo, Zé de riba/ Tesconjuro com tanto Z/ Como tem Zé lá na Paraíba”. As chacretes pira.

Em momento que se pode reputar chapliniano (tentativa de), Zé apaixona-se por uma cega. Branca (Cláudia Ohana) mora em um casarão. Bucólico, tomado pelas matas – que mais tarde caracterizariam a atriz –, pelas palmeiras, samambaias e pés direitos altos, faltando talvez um passarinho na gaiola para compor a calmaria. Branca senta-se em um banco, o vilão Miguel (Paulo Villaça) faz a corte. É o chato mais velho, uma espécie de noivo arranjado, a estragar o barato do Romeu e da Julieta.

“As Aventuras de Um Paraíba” se quer jovem. Zé poderia lembrar, na distância de alguns anos, o “Não confie em ninguém com mais de trinta anos/ Não confie em ninguém com mais de trinta cruzeiros”. Marcos e Paulo Valle sussurravam em 1971. A geração de Caíque e Ohana misturou o conselho no “Marrom Glacê” de outro destino. Entre a higiene da saúde e a restinga de sexo que ainda se podia ter, seguro e talvez libertário, antes dos sarcomas de Kaposi.

Transições bruscas, uma notória falta de concatenação entre as cenas, uma volúpia adorável, cheia de graça. Para quem imaginava pregação da Sudene e as mazelas das vidas secas, “As Aventuras de Um Paraíba” acaba no exato oposto. Zé Branco está mais para o Super Zé, herói devorador que cata dondocas, recusa-se a trabalhar como peão de obra e, ainda assim, vence. Fenômeno que todo retirante gostaria de ser, na malemolência serena do cotidiano. Ei-lo aqui, direto de 1982 para o nosso colo. A revanche vingadora, o cara de pau, que leva todos (incluindo o público), no beiço.

4 comentários:

Ricardo P. Sanchez ( Highlander ). disse...


Hola , Andrea..!! Que mais que Eu posso dizer.. Perfeito: excelente..!!

Anônimo disse...

Andrea, lendo o seu blog, embora meu portugués ainda seja de principiante, faço um curso de cinema brasileiro de graça.

Carlos GQ

ADEMAR AMANCIO disse...

Paraíba na minha cidade é um termo designado às lesbianas,lésbicas ou homossexual feminina,sei lá qual o termo politicamente correto.

Andrea Ormond disse...

Olá, Ricardo, obrigada. Procurei mexer bastante em várias referências do cotidiano que são importantes para o entendimento do filme. Um abraço!

Carlos, a proposta do blog é exatamente a de abrir os olhos para a história do cinema brasileiro, que é riquíssima.

Ademar, nesse terreno do politicamente incorreto, aqui no Rio lésbica seria sapatão mesmo. E variações em torno disso.