domingo, fevereiro 26, 2012

Areias Escaldantes


Sim, meninos e meninas, digo de fronte alta: eu me lembro. E, se acreditarmos na máxima de que memória e criatividade alimentam-se uma da outra, resta-me digerir e regurgitar, para sempre, um mundo perdido. Ensolarado, doce e brutal, parecido com um mercado persa. Era a Copacabana dos anos 80: cheia de cinemas, camelôs, aposentados e crianças, a maioria delas "patrulheiros mirins" do Carlos Imperial, "fiscais do Sarney" e todo aquele tipo de manipulação calhorda a que fomos submetidos antes da retomada do paraíso.

Fato é que o microcosmo que nos apresentavam os pais era belo, seguro, mas ínfimo. Só posso dizer do Rio de Janeiro (e o Rio de Janeiro, para mim, foi e sempre será Copacabana), portanto vejo hoje que às minhas costas pipocavam coisas incríveis: noites cariocas turbinadas por cocaína, amores quentes entre aquela moçada esperta ouvindo lps comprados nas Lojas Americanas. Pois enquanto as avós penteavam os cabelos acaju e davam “bom dia” aos netos na porta da escola, o rock brasileiro, a cultura juvenil oitentista começou a bater ponto nas salas do bairro.

O genial era ficar entre o engraçadinho e o anti careta, sem engatar a quinta marcha e esmerilhar, como nas cartelas de Super Trunfo – jogo que viciou uma geração, tanto quanto o primeiro disco do Ultraje a Rigor. Tempos estranhos. Vá lá que se a autoridade está morta, tudo é permitido. Os subversivos apareceram no Galeão, a ditadura rebolou, o paternalismo estatal começava a ser questionado. Porém, eis a dúvida: se os barrigudos dos 60 e 70 haviam aloprado na avenida, para quê tanta permissão? Pior: como lidar com a cava angústia, com o temor de suplantar os deuses idos?

Imaginem, por exemplo, que em 1982 Arnaldo Baptista não era o nuvem nove dos Mutantes, nem o arauto do lp “Lóki?” (1974). Àquela altura Arnaldo havia pulado do terceiro andar de um hospital, pouco depois de se associar a Lobão, que encarnaria a promessa de gauche oitentista. E o Lobão que aparece como ator, cantor e diretor musical de “Areias Escaldantes” (1985) já cafungara com Cazuza uma trilha de pó em cima do caixão de Júlio Barroso (1953-1984), o jornalista-hype-do-borogodó, que aproveitara a cena de Nova Iorque, cheio de sangue nos dentes. Nada mais natural. Lennie Dale e Wagner Ribeiro haviam se entupido dos Cockettes em San Francisco, um punhado de séculos atrás.

Vejam que fantasmas se sucedem. Definir a década dos 80 requer uma incrível habilidade, um olho no lance, para entender que até pode existir um it inconformista, vira e mexe ingênuo, quase nunca radical. Legitimou-se a rebeldia, em breve transformada em piada de salão. E no ano do primeiro Rock in Rio, o augusto 1985 abriu os braços para “Areias Escaldantes”, de Francisco de Paula. Desfile de cousas, gentes, tiques e subtextos que o tempo ajudou a explicar.

Vamos a um deles: a “guerrilha urbana”. Para qualquer ser humano com um pingo de amor próprio e já acostumado às xaropadas nacionais, a expressão “guerrilha urbana” provoca um calafrio na espinha. Geralmente traz a reboque o discurso pré-concebido, institucional e ideologizante. No entanto, os leitores não precisam ficar nessa de horror. Acalmem-se. Não encontramos no filme nada de Var Palmares, AI-5 e outros fetiches que o cinema brasileiro ainda remexe com furor uterino. “Areias Escaldantes” joga no time do pastiche, curtição de pós-adolescente, na maior.

Um embaixador é sequestrado (salve réveillon de 68!) e cai de boca no roteiro de Francisco e Nelson Motta. Lembrem-se que Motta havia sido co-autor, com Lulu Santos, do hino “De Repente Califórnia” (sucesso em “Menino do Rio”, 1982) e da canção “Areias Escaldantes”, que embala o filme homônimo. Passando batido nos interrogatórios do Doi-Codi e nas metáforas sobre alienação e Copa de 70, a guerrilha do filme diz amém ao besteirol, aparecem atores do “Asdrúbal Trouxe o Trombone” (Regina Casé, Luís Fernando Guimarães) e improvisos.

Há um tipo de agilidade que seria melhor sacada pelos uspianos da Vila Madalena, Ícaro Martins e José Antônio Garcia. Por sinal, ninguém há de esquecer a audácia de Ícaro e José Antônio quando falam de corpo, desejo e homossexualidade nas barbas do governo Sarney, perseguidos pelo bigode abregalhado do presidente. Cheio de tongue in cheek e pelos a gosto, “Estrela Nua” (1985) estrelou com Cristina Aché – a mesma espiã bonitona do filme de Francisco.

“Areias Escaldantes” conta com o ingrediente futurista, típico do néon realismo paulistano, mas que é logo salpicado pelo clima balneário. A narrativa se passa na fictícia província de Kali, tem gingado de Rio de Janeiro e posto 9. Ok, vêem-se citações a “Blade Runner”, a “Metropolis”. Ao fim do mundo, ao distante 1990, aos caracteres de computadores TK-85. E, ao invés de fazer os “tchururus” musicais de “Bete Balanço” (1984) – que abusa das coreografias cabulosas –, “Areias Escaldantes” divide a cena com videoclipes de Lobão e dos Titãs, atuando inclusive em esquetes. Não à toa, tal configuração frenética agradaria em cheio também às crianças (como eu) que trafegavam sem medo na moda que os primos mais velhos adoravam, entrando nos cinemas por baixo da roleta.

Em “Areias Escaldantes”, vale outra menção honrosa: a interação dos roqueiros com elementos do dito cinema “marginal”. Guará – o queridão da Belair – e Neville de Almeida – o que comia pelas beiradas – dão o ar da graça, lisos que só. Não chegam a fazer trenzinho como em “Rio Babilônia” (1982), mas demonstram toda um insolente empolgação. Na kitsch zona sul sem o loosho da discothèque, eles viam a new wave das ombreiras engrossando o caldo, costurando o tal do agito, em que “Areias Escaldantes” foi um dos mais saudosos na temporada. A estação prometia.

9 comentários:

Renan Esteves disse...

Até que enfim Andreia!Esperava muito por esta resenha! Excelente post, mas queria acrescentar algumas curiosidades: na verdade, o filme também pode ser chamado de "A caravana do Delírio"; Francisco de Paula aparece em algumas partes do filme como na interpretação do cabeleireiro bichona ou do cameramen que é morto pelo Lobão. Areias escaldantes sequer foi considerado um filme Brasileiro, pois a ditadura não o reconheceu, sendo visto apenas fora do Brasil e que demorou muito para obter notoriedade anos depois, no Brasil. Francisco de paula teve trabalho para fazer e produzir o filme, além de ser uma produtora desconhecida, longe de ser uma Embrafilme e que inclusive, hoje, é de propriedade dele.
Outra curiosidade é que eu tinha visto no programa cadernos de Cinema da Tv Brasil, com a Vera Barroso, que foi atriz no filme Muito Prazer,sobre a moda New Wave no momento,que serviu até de inspiração para o movimento dark, de roupas coloridas, drinks exóticos, pessoas batendo a cabeça na parede, tinha até a boate chamada de "Crepúsculo de Cubatão", que ajudou a divulgar grandes DJ´s da cena alternativa como Maurício Valadares, José Roberto Mahr, Edinho e Wilson Power. Era um barato! Apesar de não ter toda essa idade para dizer isso, fui criado absorvendo essa cultura, frequentando lugares como a Casa da Matriz, Cine Lapa e Fosfobox. Toda essa atmosfera me alucina e fico todo eufórico quando assisto a esse filme. Já vi diversas vezes e para mim é um dos melhores da década de 80 do chamado BrRock, junto com Rock Estrela. Só ainda não assisti a Johnny Love e Rádio Pirata, mas o filme me cativa muito pela trilha sonora que ,ao lado de Rock Estrela, também é uma das melhores.
Sem falar no elenco que tem Diogo Vilela, Regina Casé, Luís Fernando Guimarães e Cristina Aché,sempre linda e maravilhosa. Adoro a cena do clipe de Mal nenhum com Lobão, sendo gravado lá no Porto do Rio, acredito que seja ali perto do Santos Dumont, me corrija se não estou errado, sem falar na participação do Neville D´Almeida no filme. Tem a participação das crianças no final que, se eu não me engano, acho que são filhos de alguns atores do filme e a mansão onde a quadrilha fica no final, que hoje pertence ao cantor Roberto Carlos, acho que é, na verdade, um estúdio dele. Excelente filme, maravilhosa resenha e tem um cenário que é a cara dos anos 90, como dizia Neville D´Almeida:"Inverno de 1990, o futuro será"? Jamais ele saberia que os anos 90 mudariam a história do país, com a queda de Fernando Collor, o fim da Embrafilmes, a morte de um grande heroi que foi Senna e muitas outras coisas. Mais uma vez parabens pela resenha e muito obrigado por ter lembrado do meu comentário ano passado. Espero que as próximas resenhas sejam sobre os filmes do BrRock 80.Até mais.

Francisco disse...

Areias escaldantes vale mais pela trilha sonora, que retrata uma época alucinante. O filme, como vários outros da mesma linha, é fraquinho. Os anos 80 foram um paradoxo. O Brasil estava mergulhado numa crise econômica terrível. Eram tempos de inflação galopante. Segundo piada que corria naqueles anos, em razão da desvalorização da moeda em tempo recorde, era mais barato andar de táxi do que de ônibus. Lembro de como as pessoas eram pobres. Por outro lado, havia um turbilhão de acontecimentos passando em frente aos nossos olhos sem que talvez nos déssemos conta do que viria a ser realmente aquilo. Assim como tantas outras pessoas, vivi cada minuto daqueles anos intensamente, à exaustão. Vi e acompanhei o surgimento (e ocaso também) de quase todas as bandas de rock. Quando garoto, lá pela metade dos anos 1970, com certa inquietação, me perguntava se iria passar pelos anos sem vivenciar algo parecido com que eu havia lido nos livros ou visto nas telas a respeito de outras décadas. Graças ao deuses, minha geração, sob certo ponto de vista, embora tenha percorrido um caminho de espinhos, foi testemunha de uma época maravilhosa, o que viria, tempos depois, ser conhecida como “Anos 80”.

Ricardo P. Sanchez ( Highlander ). disse...

Hola, Andrea ! Parabéns pela Tua Excelente análise , como sempre , certo? Agora se Me permite mudar de assunto , deixo aquí a sugestão de Produções que mereceriam também ser submetidas a Tua análise , que são: Sargento Getúlio , Índia - A Filha do Sol , Águia na Cabeça , Rei do Rio , A Freira e a Tortura(com David Cardoso & Vera Gimenez)& , finalmente , Ato de Violência(Dirigido por Eduardo Escorel & com o``James Coburn´´Brasileiro,Nuno Leal Maia,que nessa Produção vive o Célebre Serial-Killer Chico Picadinho ), certo ? Saudações & espero resposta.

Ricardo P. Sanchez ( Highlander ). disse...

E , à propósito , me lembrei de outras: Ana Terra( com Rosana Ghessa)& Quem têm medo de Lobisomen(Reginaldo Faria & Stepan Nercessian/Terrir).
Muito Obrigado !

Anônimo disse...

"Areias escaldantes sequer foi considerado um filme Brasileiro, pois a ditadura não o reconheceu, sendo visto apenas fora do Brasil e que demorou muito para obter notoriedade anos depois, no Brasil."
Deves estar confundindo esse longa com algum outro, pois o filme foi lançado normalmente no Brasil, não gerou polêmica alguma, cerca de um ano depois de rodado-tempo bastnate normal entre filmagem e lançamento do produto pronto-, não teve problemas com censura ou militares-bicho papão e depois, lançado sem nenhum problema, em vhs pela Cic , se não me engano (eu loquei o filme umas duas vezes num VídeClube-antes das vídeolocadoras, haviam esses, a pessoa pagava uma ´jóia´ etinha direito de levar x filmes para casa por um período determinado de tempo).
Marco Freitas

Andrea Ormond disse...

Renan, eu nunca soube de um imbróglio desse tipo envolvendo a exibição do filme. Pelos dados de produção que constam no site da Cinemateca Brasileira, tudo transcorreu normalmente. As locações parecem ser estas que você citou. O Crepúsculo de Cubatão era um marco da noite em Copacabana. Ainda pequena, lembro de ver a legião de pessoas andando por Copa, com o gestual e as roupas característicos. O Dj Edinho morava nas redondezas, filho do general Nilton Cerqueira, que havia comandado o cerco ao Lamarca. Obrigada, em breve publico outros textos sobre a safra dos 80. Abraços!

Francisco, confesso que guardo os 80 com carinho, mas sem o mesmo entusiasmo dos 70, que me exerceram um fascínio maior. Claro que por serem os tempos da minha infância, sempre esbarro em detalhes e volto aos 80 quase sempre. É inusitado um periodo que teve de conjugar Sarney, overnight, reserva de mercado, Baby Consuelo e outros mitos afins.

Saudações, Ricardo! Boa lista, vou escolher alguns títulos. Abraços

Pois é, Marco, também não me lembro desses detalhes. Mas vale o comentário do Renan, que de fato aprecia bastante o filme.

Luiz com Z disse...

Andrea, talvez seja isso que mais ajudou a década de 80 a me cativar nos meus anos cruciais de formação: a desmoralização total. Não sei se cabe aqui o termo "niilismo", mas a esculhambação total das instituições, fosse por desafio à autoridade ou por falta de credibilidade mesmo, era algo que me fascinava. Preciso sempre rever essa coleção de pastiches deliciosos (é que pra mim pastiche é um pastel adocicado com recheio de muita coisa gostosa da infância) como auto-ajuda no sentido de me fazer lembrar que a vida nunca deve ser levada muito a sério, dada a tal da transitoriedade. E se for com eco na bateria, melhor ainda. Um beijo do contemporâneo
Luiz.

eduardo vieira disse...

que máquina do tempo é essa? deu até pra sentir o cheiro daquela época, das camisas dobradinhas, dos surfistas clones do biasi, das bichas com bermudas jeans desfiadas...confesso que não fui maduro e Areias Escaldantes foi um filme que eu fui assistir sozinho e saí na metade ou até antes, coisa que só tinha feito no último metrô do Truffaut...acho que preciso rever como vi muitos hoje no nosso canal Brazuca e amei ou não tive saco.Vc escreve muito bem!!

Andrea Ormond disse...

Luiz, niilismo realmente não é o caso, porque havia o apego a outras instituições, agora travestidas de pop. O combate acabava sendo superficial, com um ou outro gauche de fato. Entre os filmes dos 80, os do José Antônio e do Ícaro Martins apontavam para outras direções, tinham um discurso mais volumoso (especialmente se a gente levar em consideração "O Olho Mágico do Amor", de 81). Dá para incluir na dieta, mas sem excessos, para não bater aquele mal estar gastronômico e ficarmos à míngua nestes tempos de luto, em que não mais existe a Bola Porco do Mato.

ahahahahah Eduardo, ainda estou me recuperando da parte das bichas com bermudas jeans desfiadas. De preferência com sandálias havaianas e pochete. Um abraço