segunda-feira, maio 20, 2013

Praça Saens Peña


A charada é verdadeira, e nem todos conhecem. O que tem em comum Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Tim Maia e Jorge Ben? Além da mesma geração musical, os quatro dividiram um bairro. O bosque das certezas suburbanas cariocas, a Penny Lane brasileira, o vale frondoso e adorável: a Tijuca.

Tijuca é a prima ancestral da classe média no Rio de Janeiro. Por lá tremula o pavilhão do América Futebol Club, as digressões do chope, a corrida de gato e rato, imprensada nos morros superlotados do tempo. O contestado tijucano é forte. Engloba Grajaú, Vila Isabel, Estácio, Rio Comprido (na versão maximizada), ou apenas as colinas da Praça Saens Peña e adjacências (na versão minimalista).

No bairro, dormem as lendas. Os garotos do primeiro parágrafo (que se reuniam na rua do Matoso) ou Milton Nascimento (que debutou no mundo em plácido lar tijucano). Também batem perna Aldir Blanc, as normalistas do Instituto de Educação, o DOI-CODI da Barão de Mesquita, o Café Palheta. É a capital chique da Zona Norte. Afirma ter olhos para si, mas os inclina para trás, rumo à Zona Sul, admirada e vencedora na distância, em permanente queda de braço.

Praça Saens Peña” (2009), de Vinícius Reis, carrega no título um marco: a praça, que se abre marota na janela de Paulo (Chico Dias). Professor, escritor, homem correto e saliente. Marido de mulher bonita (Teresa, Maria Padinha) e pai de garota de 16 anos (Bel, Isabela Meirelles).

Vinícius Reis escolheu uma família comum. Escolheu, sobretudo, a dimensão eterna do lugar. Encheu-a de fitas, coloridas, atravessando as ruas e explodindo nos canteiros, perto do chafariz. Acompanhamos Paulo, Teresa e Bel entre fevereiro de 2003 e junho de 2003. Surgem daí as referências didáticas à guerra no Golfo e uma (oxalá!) rápida pregação de Paulo contra o rebu bélico.

Paulo é convidado a escrever um livro sobre a Tijuca. Manifesta-se então a alma do artista (um dos aspectos tijucanos). Precisa entregar o livro até maio, conta com o apoio da esposa. Teresa enlouquece e tem a vontade (comezinha, burrinha) de comprar apartamento. Talvez, enriquecer (outro aspecto do bairro).

A insônia de Paulo leva o filme à madrugada na Saens Peña. Passam as horas e o sol leva às tardes na praia. E a praia, apesar de não existir no bairro, vira uma rotina que adere à pele como o café e o pão na chapa. Bel se encarrega da praia, curtindo o bêtise com a amiguinha de colégio. Paulo se encarrega do expresso na padaria (que Vinícius captura na displicência matutina das mínimas coisas). Já o amor por um apartamento e o caso com o proprietário, sobram para Teresa. 
 
No filme, pululam as teses sociológicas de Paulo, o ufanismo sério e debochado, a instituição familiar. Permeia-se tudo com os comentários sobre os morros (assunto que é tão local quanto as conversas sobre o tempo em Londres). A parábola sobre a convivência asfalto-e-morro esconde na Tijuca outro tempero, diferente de “Terror e Êxtase”, o elixir violento de José Carlos de Oliveira. Aldir Blanc aparece em pessoa e desfila o rosário tijucano para Paulo. Ouve-se a liturgia, a malícia, o bate-papo que lembra o diretor David Neves ao tratar com carinho (e aparente facilidade) o cotidiano dos personagens.

Macedo (Guti Fraga) pode até contar que teve o filho assassinado pelo tráfico de drogas. Chega a convidar Paulo para morar na favela e abandonar a Praça. Fosse o filme uma chanchada politicamente correta, Paulo aceitaria outro conselho: espancar Teresa quando a mulher se recusa a deitar com o marido. Há um limite civilizatório entre Paulo e Macedo. E que não se mede pela mera condição econômica.

É curiosa a relação entre Paulo e Tereza. Parte de um princípio bastante negado atualmente: os dois se amam. Como um homem e uma mulher. Adultos, ao invés de quarentões molóides sujando as calças. Em “Praça Saens Peña”, a verdade é construída pela história do casal.

Eis que aparece o livro e Teresa cai de quatro. A deliciosa MILF acha que Paulo será best-seller ou coisa do gênero. Quer comprar um apartamento e, no frenesi, acaba seduzindo o proprietário (João, Gustavo Falcão). No entanto, o acting out de Teresa termina na mesma hora em que acaba o apartamento. João consegue vendê-lo e muda-se para o Leblon. O interesse não era pelo rapaz, mas pelo que ele representava (a independência financeira). A devoção continuará direcionada a Paulo, apesar de ter erguido o graal no quintal do vizinho.

A atuação dos atores, impecáveis, se acerta com o filme. Vinícius Reis entendeu aquelas vidas incongruentes, como o bicho humano deve ser. Teresa histérica: vazia e cheia, representante da fauna de Stanislaw Ponte Preta. Paulo entre o pé-no-chão de professor e o sonho narcísico do artista. Bel reclamando, como convém aos adolescentes. Quer e não quer ser acariciada, dormir manso no colo do pai e da mãe.

Para variar, em se tratando de bom cinema brasileiro, temos que perseguir e laçar "Praça Saens Peña", antes que desapareça de nossas possibilidades. Mas, acreditem, entra em qualquer lista honesta dos melhores da primeira década do século XXI. Sobrevive na memória de todos: brasileiros, cariocas ou tijucanos.

4 comentários:

Matheus Trunk disse...

Andrea: vi esse filme quando foi lançado numa sessão do Espaço Unibanco em SP, com pouquíssima gente. Trata-se de um belo filme e lembra muito o cinema do David Neves como você bem salientou. Acho a atuação do Chico Diaz excelente, não tanto nessa coisa do artista mas naquela velha coisa do intelectual brasileiro que não consegue transformar seus sonhos em realidade. Um negócio meio Policarpo Quaresma. É um filme interessante e um dos melhores da atual safra como você bem salientou

Andrea Ormond disse...

Matheus, entendo o que você quer dizer, mas isto tambem é algo bem típico da alma idealizada da Tijuca. A hora em que o personagem do Chico Diaz conversa com o Aldir Blanc (a personificação do bon vivant tijucano), ele parece entrar em êxtase.

ADEMAR AMANCIO disse...

Me parece que a turma do primeiro paráfrafo também integraram um grupo musical,na pré história da música pop brasileira.Quanto ao filme nem sabia que existia.

Pedro Tavares disse...

Protelando até hoje para assistir. Aproveitarei o lançamento de "Noite de Reis" para fazer sessão dupla.