domingo, setembro 30, 2012

Carreiras


Hoje é aniversário do diabo. Estou dando uma festinha aqui em casa.” Ana Laura Steiner (Priscila Rozenbaum) despeja uma fileira de pó em cima da mesa. O nariz acompanha a estrada branca, faz um movimento que chupa do rabo até o talo. 39 aninhos, mau caráter, insuportável, Ana Laura tem a pele encarquilhada de sol e a fleugma da mulher lebloniana. Foi recebida pela Zona Sul do Rio, cumpriu a rota migratória dos pássaros da espécie e abandonou a cidade do interior.

As câmeras não mostram, mas atrás de Ana Laura vemos Domingos de Oliveira, o diretor-roteirista que ousou amar as mulheres. Lembrem-se de “A Culpa” (1971), quando no close up final Matilde (Dina Sfat) enfrenta o maior delírio de todos: a própria imagem no espelho. Já o clássico “Todas As Mulheres do Mundo” (1967) acabaria estrelado por Leila Diniz. Esposa e musa, um duplo papel, semelhante ao de Priscila Rozembaum em “Carreiras” (2005).

Para “Todas As Mulheres do Mundo”, Domingos mirou no peixe e acertou no gato. Era ao mesmo tempo “hermético” e popular. “Cinema Novo” e chanchada. Sem querer, inspirou a franquia de “Os Paqueras” (1969) e inúmeros filmes. Por outro lado, Paulo (Paulo José) e Maria Alice (Leila Diniz) deixaram as vanguardas suspirando por um chicabon no colo da namorada, ao invés de um Nordeste aborrecido e utópico.

Teatrólogo de berço, em “Carreiras” encontramos o Oliveira de sempre: valsando entre o teatro e o cinema. Não à toa, fez questão de colocar um prólogo em que explica a produção do filme, o baixo orçamento, o espírito de cooperativismo. Em seguida, encaixa outro esquete. Amigos e ele próprio jogando conversa fora em um bar. Elucubram os desvãos do teatro, o mundo menor do cinema. Inauguram a noite pura e vaporosa, no momento em que a filosofia cristaliza o chopp e ouvem-se estrelas.

Faltou na mesa um quase-irmão, Oduvaldo Vianna Filho. Morto décadas antes, é figura recorrente na geração dos dois. Vianinha escreveu “Corpo a Corpo”, peça em que “Carreiras” se baseia de longe. Em “Corpo a Corpo”, a artista plástica encarna o confronto entre “a arte” e “o sistema”. No filme, Ana Laura encarna o drama entre a vida longe e fora da televisão. Quando está fora, ataca “o sistema”. Quando está dentro, esquece todo o resto.

Ana Laura acaba de saber que uma patrícia vai tirá-la do noticiário noturno. A repórter idosa cansou os telespectadores. Decide, então, escrever um livro contando os podres do “sistema” e escolhe encher a paciência dos colegas, em telefonemas desagradáveis. Grita com o chefe. Aluga o porteiro. Xinga os vizinhos. Chuta a paciência do garotão que pegou para criar.

É a epifania da coca, o discurso siderado, violento, odiado. É apoteose da narrativa que marca Domingos e Vianinha. Analisando-se a estrutura de “Carreiras”, percebe-se que a construção dos personagens acontece por atos e por frases que recitam sobre o meio. Aqui, a palavra constrói. A imagem é mera consequência e não a razão de ser. O teatro diz um alô, apesar de embalado em formato devocional e cinematográfico.

Quem se acostumou à economia de raciocínio das últimas duas décadas, terá dificuldades imensas em gostar do filme. Azar. Se o espectador fechar os olhos, a música de Joaquim Assis conseguirá levá-lo a um outro umbral. Poderia ter sido criada por Remo Usai ou Carlos Moletta, o parceiro de David Neves. No entanto, sai a Rua Prado Júnior de David – prima da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, decorada pelas mesas queridas do Restaurante Cirandinha – e eis o Baixo Leblon, o serpentário das atividades.

Aspecto positivo em “Carreiras”, o bom-mocismo não se mete a besta. Fica quietinho e não aparece. A heroína não precisa se redimir. Ela pula de galho em galho, no cangote de quem oferece ajuda, mesmo que momentânea. O ex-marido Esteves (Domingos de Oliveira) tenta ser o fiel da balança. Explica os erros da mulher, puxa daqui, puxa pra cá, mas estoura rápido. Não aguentam se falar. Solitária, pirada nos dramas da família e do trabalho, garotinha e mulherão. Ana Laura revela as tramóias shakesperianas da TV, defende sempre o próprio lado, permanece cheirada demais para uma auto-crítica. E, no final das contas, para que tê-la? O mal talvez vença e cavuque a ferida eterna.

Exatamente pela pretensão de contar uma história de bizarra verossimilhança, “Carreiras” coloca mais um pé na obra de Domingos de Oliveira, acostumado a desprezar o óbvio. Sabe-se que não foi morar no Cinema Novo, teve apenas uma estadia rápida, de poucas horas. Enfrentou e enfrenta as batalhas dos editais, morgando planos deixados pela metade. Pode ficar tranquilo, ciente do dever cumprido. A histérica Ana Laura caminhou triunfalmente na galeria de tipos do diretor e – bem provável – deve sentir um prazer sexual incrível em arrancar a cabeça de quem pense tirá-la de lá.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que demais ver você falando desse filme, Andrea!
Quando assisti, pensei: porque esse não poderia ser um respiro pra esse cineminha sempre igual & global?

A discussão no bar é um prólogo muito legal. Já a Priscila me passou uma verdade no filme... Fiquei querendo vê-la em muito mais coisas!
E a cena da praia (desesperada ao telefone)? Achei muito boa.

Você como sempre, certeira ao afirmar: "Quem se acostumou à economia de raciocínio das últimas duas décadas, terá dificuldades imensas em gostar do filme. Azar."
Azar mesmo.

beijão pra você :)

Pedro